História da Câmara Municipal de Aracruz

por Manuela Neves publicado 18/10/2021 15h45, última modificação 07/10/2024 08h56

AS CÂMARAS MUNICIPAIS NO BRASIL

As câmaras municipais constituíram o primeiro núcleo de exercício político do Brasil. Elas começam a ser criadas a partir de 1532, no contexto da primeira expedição colonizadora portuguesa na América, comandada por Martim Afonso de Sousa, constituindo-se, ao longo do período colonial, como base local da administração portuguesa e reunindo competências das esferas administrativa, judiciária, fazendária e policial.

A primeira câmara instalada no Brasil foi a câmara da Vila de São Vicente, São Paulo.

Com a Independência do Brasil e ao longo do período imperial (1822-1889), essas instituições passaram a funcionar como um modelo de racionalização para a organização e o governo municipal. A primeira Carta Constitucional do país, de 1824, determinou que as câmaras municipais passassem a ser compostas por vereadores, competindo-lhes o governo econômico e administrativo de vilas e cidades, e excluindo a função judicial de sua esfera de atuação. Mesmo com as mudanças determinadas pela Carta de 1824, essas instituições tiveram ratificadas suas funções de maneira clara e objetiva, sem eliminar seu caráter de interlocutoras das demandas locais aos interesses imperiais (vice-versa).

Segundo o historiador Caio Prado júnior, eram nas Câmaras que transitavam as queixas e os desejos do povo. Deriva daí o papel político que assumem em momentos decisivos da história brasileira. As Câmaras Municipais eram concebidas como a “cabeça do povo”, o que lhes atribuiu um papel político de relevo na independência política, na constitucionalização e na fundação do Império, no século XIX.

Verifica-se então que durante o Brasil Império, cabiam às Câmaras funções administrativas que atualmente são de atribuição das prefeituras, instituições que ainda não existiam naquele período. O presidente da Câmara era o presidente do Governo Municipal. Além disso, durante o Império, as câmaras também exerciam funções que na atualidade competem ao Ministério Público, como as denúncias de crimes e abusos aos Juízes, além de desempenhar funções de natureza legislativa e policial. Por isso era comum que as casas de câmaras funcionassem também como prisões.

CASA DE CÂMARA E CADEIA DE SANTA CRUZ

É nesse contexto que se tem registro de uma primeira instituição denominada Câmara Municipal na então Villa de Santa Cruz, primeira sede do hoje município de Aracruz, e um importante porto de comércio marítimo e fluvial da província do Espírito Santo. Foi instalada em 1848, ano da emancipação do município, e tinha entre as suas competências deliberar sobre abastecimento, segurança, práticas de ofícios, emprego de pesos e medidas, limpeza e conservação urbanas, multas e circulação, tendo também algumas atribuições judiciárias e militares locais (SILVA, 1986:280).

A Câmara de Aracruz foi 11ª a ser instalada no estado, uma vez que o município foi o 11º criado na então província do Espírito Santo.

Os registros mostram que houve duas sedes da Câmara de Santa Cruz, que naquele tempo eram denominadas Casa de Câmara e Cadeia. A primeira delas ocupava um imóvel alugado, de aspecto rústico, construído em taipa, como era a maioria das casas e prédios da Vila na época. Apesar da rusticidade, foi nesta casa que D. Pedro II se hospedou, quando de sua passagem por Santa Cruz, em 1860. Dezesseis anos depois, em 1876, a Câmara ganhou sede própria e o prédio passou a abrigar também as atividades do Júri e a prisão da Vila.

O jornal O Commercio de Vitória, de 3 de setembro de 1876, descreve assim a primeira sede própria da Câmara Municipal:

“Acha-se concluido este edifício, incontestavelmente um dos primeiros da província nesse genero. Não é simplesmente uma casa da Camara; é tambem prizão; entretanto, este caracter mixto nada lhe tira de sua apropriação, essencial de toda construção. O estyllo é mudesto e o geralmente seguido nas nossas construcções pequenos civis (...) A parte reservada às sessões [do] Jury, é o vasto salão da esquerda, que abrange quase metade do edifício (...) a outra metade está dividida em sala secreta, um quartinho de deposito de objectos da Camara e prizões (...) Eis, pois, concluída a Camara de Santa Cruz uma das primeiras da província, construção fundamental da Villa real.”   

O prédio descrito acima ainda existe no hoje Distrito de Santa Cruz e é tombado pelo Conselho Estadual de Cultura. Foi restaurado pelo Governo do Estado, em 2016, e atualmente está ocupado pelo Museu Histórico de Santa Cruz. O edifício, que é patrimônio histórico e cultural do município, funcionou como Câmara até 1951, quando a sede foi transferida para Sauaçu, atual cidade de Aracruz.

A REPÚBLICA E A ORGANIZAÇÃO DO PODER LEGISLATIVO MUNICIPAL

Com a proclamação da República, em 1889, vai-se configurando uma nova organização política no Brasil, que nos municípios resulta na divisão dos poderes entre legislativo e executivo (o judiciário já era um poder independente e autônomo desde o período do Império). As câmaras municipais perdem a competência de administração pública das vilas e cidades. Surge a figura do intendente (ou prefeito), e as prefeituras (ou intendências) vão sendo instaladas nos municípios brasileiros.

No Espírito Santo, as primeiras prefeituras são instaladas em 1914, com a nomeação dos primeiros prefeitos. Para o município de Santa Cruz foi nomeado prefeito João Soares Ferreira de Moraes e se inicia a primeira legislatura de fato legislativa da Câmara Municipal. Com a nova organização política, a Câmara deixa de exercer funções executivas e passa a exercer função legislativa e fiscalizadora, que mantém até os dias atuais. Por isso, é partir desta mudança que consideramos o início das legislaturas da Câmara Municipal de Aracruz.

AS ELITES POLÍTICAS

A primeira legislatura de fato legislativa foi iniciada em 24 de agosto de 1914 e continuou tendo lugar na Casa de Câmara e Cadeia de Santa Cruz, que passou a abrigar também a Prefeitura (ou Intendência) Municipal. Em 1951, a sede do município foi transferida para o interior, para a localidade de Sauaçu, para onde haviam se deslocado boa parte dos imigrantes italianos e seus descendentes. Vale notar, que os imigrantes vieram na famosa Expedição de Pietro Tabachi, chegando a Vila de Santa Cruz em 1874, para fundar aquela que seria a primeira colônia italiana no Espírito Santo. De lá, eles foram penetrando as matas do interior do município em busca de terras.

O progresso que os imigrantes e seus descendentes alcançaram na localidade de Sauaçu será um dos fatores que vai impulsionar a transferência da sede. Soma-se a isso, o fato de que a Vila de Santa Cruz já não tinha a relevância econômica de antes, sobretudo devido a decadência do seu porto, que perdeu importância com a passagem da Estrada de Ferro Vitória a Minas pelo interior do município. A localização mais central de Sauaçu em relação aos demais distritos foi outro fator determinante para a transferência da sede.

A elite luso-brasileira em Santa Cruz

No tempo de império, a elite do país era formada por fazendeiros, agricultores, homens de posse, os “filhos de algo” ou fidalgos luso-brasileiros. A partir da Proclamação da República, sobressai no contexto político brasileiro a figura do coronel, em geral homens de posses e de grande espírito empreendedor, que passam a dominar o poder político nas vilas e municípios do país, e às vezes alcançando influência regional.

Em Santa Cruz, esta figura será representada por Augusto Ferreira Lamêgo, agrimensor carioca de ascendência portuguesa, que chegou à vila no ano de 1891. Em Santa Cruz, o coronel Lamêgo tornou-se também lavrador, comerciante, fazendeiro e dono de cartório e “comandou a política municipal por mais de 40 anos durante a Velha República (da proclamação até 1930), tendo sido eleito vereador de 1917 a 1920, deputado estadual por dois mandatos, de 1925-27 e de 1928 a 1930” (Coutinho, p. 302). Ele também integrou o Conselho Consultivo, nomeado pela Junta Interventora do Estado do Espírito Santo, no contexto do Estado Novo, entre 1937 e 1945, quando as câmaras municipais são fechadas e o poder legislativo dos municípios é extinto.

Apesar do empenho, influência e comando político do Coronel Lamêgo em Santa Cruz, ele não conseguiu evitar a decadência da vila. Ao morrer em 1939, Santa Cruz já perdera grande parte do dinamismo econômico que alcançara nas últimas décadas do Império. 

Os ítalo-brasileiros e a ascensão de Sauaçu    

Além da localização estratégica de Sauaçu e da passagem da Estrada de Ferro Vitória a Minas, o dinamismo econômico que será impulsionado a partir do interior, deveu-se também a toda cadeia de negócios que surge relacionada à produção agrária, sobretudo as plantações de café e a exploração madeireira. O espírito empreendedor dos imigrantes e seus descendentes foi decisivo para o progresso de Sauaçu. A ascensão econômica das famílias italianas vai resultar consequentemente em influência política. Os imigrantes e seus descendentes vão ocupar espaço e disputar poder político com representantes das antigas elites de Santa Cruz.

Homens como Eugênio Bitti, José Marcos Rampinelli, Giovanni e José Modenesi, João Antônio Moro, Ângelo Trazzi, Benedito e Waldemar Devens, e Luiz Theodoro Musso (seu Lulu) passam a formar a nova elite econômica e política do município e serão decisivos na transferência da sede. Luiz Theodoro Musso, aliás, vai se tornar o primeiro prefeito eleito nas urnas em Aracruz (denominação que o município de Santa Cruz passou a ter a partir de 1943) e instalar definitivamente, em 1951, a sede da administração municipal em Sauaçu, após intensa disputa política.

Para exemplificar a força política das famílias dos imigrantes, vale notar que entre o final dos anos 1940 e final dos 1990, com pequenos intervalos, os Bitti e os Musso vão se revezar na cadeira de prefeito. 

Nos distritos

Essa mudança na correlação de forças políticas vai se refletir também na composição da Câmara de Aracruz. A ascensão dos descendentes na política aracruzense já se manifesta na primeira legislatura, quando a sede administrativa ainda era em Santa Cruz. Deocleciano Tabachi, neto de Pietro Tabachi, foi o primeiro representante da colônia ítalo-brasileira no Legislativo Municipal. Ele foi ainda o segundo prefeito do município, sendo sucedido por seu irmão, Pedro Tabachi, que viria a se tornar vereador na quarta legislatura da Câmara de Aracruz.

A família Lamêgo também permanece influente na política municipal, elegendo representantes na Câmara mesmo depois da transferência da sede. Nos distritos, sobressaem outras famílias que formam as elites agrárias do município, que assim como os italianos de Sauaçu e os Lamêgos em Santa Cruz, terão influência sobre a política de Aracruz e representação em várias legislaturas da Câmara Municipal: os Coutinho, de Barra do Riacho; os Loureiro, em Gemuhuna; Pessoti, em Guaraná; os Leal e os Souza, em Vila do Riacho.

A CÂMARA MUNICIPAL DE ARACRUZ

O projeto de transferência da sede administrativa de Santa Cruz para Sauaçu (ou cidade de Aracruz) foi liderado por Luiz Theodoro Musso, Eugênio Bitti (fazendeiro de Sauaçu e primeiro vereador descendente dos imigrantes italianos instalados nesta localidade) e Pedro de Araújo Leal (fazendeiro em Vila do Riacho), que se tornara presidente da Câmara na 8ª legislatura. No dia 11 de agosto de 1948 foi aprovado pelo Legislativo Municipal o projeto de transferência. A decisão provocou intensa disputa política entre a antiga e a nova elite, que só foi resolvida pela Lei Estadual 779, de 1953, que encerrou a disputa em favor de Sauaçu.

Com decisão definitiva, as sedes dos poderes também serão transferidas e a Câmara Municipal vai funcionar no mesmo prédio da Prefeitura Municipal (onde atualmente funciona a Delegacia da Polícia Civil), na Avenida Venâncio Flores, uma das primeiras vias traçadas no centro de Aracruz. Dali, ela será transferida para um sobrado, localizado na Rua Ananias Neto, também no centro da sede. Em seguida, a Câmara vai se deslocar para outro prédio na mesma Ananias Neto, antes de retornar à Avenida Venâncio Flores e ocupar o prédio onde atualmente funciona o Conselho Interativo de Segurança de Aracruz (Cisa). Por fim, em 1998 o Legislativo Municipal passa a ocupar a sede atual, localizada na Rua Professor Lobo, nº 550.

Lideranças sociais e comunitárias

Vale notar que a influência das elites políticas vai permanecer mesmo com a chegada de grandes indústrias, empresas multinacionais como a então Aracruz Celulose (atual Suzano), a partir da década de 1970. Mesmo com a grande transformação que vão provocar em Aracruz, que evoluiu rapidamente de uma economia menor e dependente para uma unidade de produção do capital internacional, a influência das multinacionais na política municipal tem se restringido a apoiar financeiramente e igualmente, os candidatos com maior chance de sucesso nas eleições locais. 

Mas se as elites vão permanecer influentes, outros atores terão participação ativa na vida pública e política de Aracruz, como as lideranças sociais e comunitárias, que exercem ou exerceram influência entre a população do município. Líderes religiosos, como o Monsenhor Guilherme Schmitz (1906-1983), promotor de uma verdadeira revolução sociocultural no município. Respeitado e admirado pela população por seu trabalho em prol da saúde, da educação e assistência social, Monsenhor Schmitz foi um interlocutor importante e influente entre as lideranças políticas de Aracruz. Outro nome a ser lembrado é o de Francisco Monteiro Bermudes (Chico da Farmácia), filho de ex-escravos, que participou da fundação do Hospital Maternidade São Camilo e foi o vereador mais votado no pleito que o elegeu, tendo exercido o cargo de presidente na 14ª Legislatura da Câmara Municipal.

As populações indígenas, dos povos originários de Aracruz como os Tupiniquins e Guaranis, vão eleger como seu primeiro representante, o vereador Ervaldo Santana Almeida, de Aldeia Caieiras Velha, na 24ª Legislatura. Lideranças comunitárias, na sede, nas aldeias e nos distritos, também têm sido atores importantes na política de Aracruz, seja como interlocutores ou mesmo elegendo representantes na Câmara Municipal.

 

BIBLIOGRAFIA

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